quinta-feira, 10 de maio de 2007

Uma Teoria da Justiça, por Snowball

Finalmente ganhei coragem para responder ao Timóteo. Isto vai ser longo...
Gostaria por começar que não tenho medo da igualdade. Acho que é um objectivo louvável, e gostaria de viver numa sociedade mais "igual" que aquela que temos.

Mas vamos então por partes:
1- O pressuposto base da minha análise é a de que os seres humanos são iguais em dignidade, e como tal, merecem o inteiro respeito dos demais que com eles vivam em sociedade.
Este é um pressuposto que não estou disposto a discutir, sob pena de entrar num debate filosófico inconsequente e irresoluvel. Acredito que qualquer ser humano equilibrado e dotado de razão concordará com isto. Acredito que passe sem problemas a tripla formulação dos imperativos categóricos de kant. Acredito ainda que passe com distinção uma abordagem de ética utilitarista.
2- Decorre ainda do anterior que "cada pessoa tem um direito igual à mais extensa liberdade fundamental compatível com idêntica liberdade dos outros".

3- Sendo assim, a igualdade absoluta de rendimentos seria uma clara violação do direito dos indivíduos a prosseguirem livremente os seus objectivos - uns são mais materialistas, outros menos. Cada um deve poder livremente escolher o seu objectivo e agir de acordo com esse objectivo.

4- No entanto, para ter uma igual liberdade de atingir os seus objectivos, é necessário igualdade de partida. Decorre daqui que cada um tem direito a uma igual parcela da Terra. Ora, esta não está igualmente distribuída. Poderá tal ser legítimo? Sim, mas apenas se até o mais desfavorecido beneficiar com essa repartição desigual.

5- Não obstante, mesmo o mais desfavorecido, por ser igual em dignidade, deve ter igual possibilidade/liberdade de atingir o "topo da pirâmide". O que determina essa liberdade real de atingir o topo da pirâmide? "A paz, o pão, habitação, saúde, educação". Não significa isto que deva ser o Estado a fornecê-los gratuitamente a cada um, sem nada em troca. Significa apenas que cada um deve ter condições reais para os obter, utilizando as suas possibilidades concretas. Nos casos em que o próprio não tenha possibilidade de os obter por si, é então obrigação da sociedade (havendo possibilidade disso) os fornecer na medida do indispensável.

6- Note-se que a redistribuição é importante também para assegurar uma igualdade de oportunidades "intergeracional".

7- Diga-se ainda que a acção do indivíduo em sociedade gera automaticamente obrigações do individuo em relação a essa sociedade (a que correspondem, de forma inversa, direitos do indivíduo). Ou seja, se o indivíduo beneficia pela presença na sociedade, é legítimo para a sociedade esperar partilhar da sorte ou azar desse indivíduo.

8- Mais, todos nós beneficiamos pela pertença à sociedade, e usufruimos de "bens sociais" como sejam os direitos que nos são reconhecidos, o acesso e respeito pela propriedade individual, o acesso ao conhecimento acumulado (quem seria o Bill Gates se não se tivesse inventado os computadores, e milénios antes disso, o ábaco?). O que significa que, de alguma forma, a sociedade é "accionista" (ou, mais suavemente, stakeholder) dos nossos empreendimentos. (está aqui uma oportunidade para uma teoria do "capital social do conhecimento" para quem quiser desenvolver). E como todo o accionista, tem direito à sua remuneração. Reconheça-se, no entanto, que a criação de riqueza de um tende sempre a beneficiar a vários, e as ideias inovadoras acabam por acumular-se no "capital social do conhecimento" para as gerações futuras.

Posto isto, em jeito de conclusão, na sociedade "justa":

I- A desigualdade económica só deve ser aceite quando esta beneficiar a todos, e a cada um, sem excepção (como princípio).

II- A sociedade não se deve limitar a assegurar que o "último" está melhor que na situação inicial, mas que este tem acesso aos recursos (à chegada) que lhe permitam viver, não só, em dignidade, mas ter uma hipótese real (e em igualdade processual) de progressão social, desde que a sociedade tenha recursos para isto. Hoje em dia, nas sociedades ocidentais, têm, mas este aspecto não é ainda cumprido.

III- Alguma redistribuição adicional é ainda aceitável, desde que em valores reduzidos, ao abrigo dos pontos 6, 7 e 8. Mas não significa isto que, no caso dos pontos 6 e 8, ela seja desejável, pois reduz o incentivo à criação de riqueza (para o próprio ou para as gerações seguintes).

IV- Não resulta daqui que a máxima igualdade à chegada seja legítima. Diria até que o desincentivo ao esforço individual a pode tornar indesejável. De qualquer forma, acho que constitui uma violação não justificada ao ponto 2. (Este é o ponto em que discordo do Timshel). Também sou cristão, e compreendo que a igualdade de "irmãos" seja vista como positiva. Mas respeitados os direitos fundamentais de cada um, defendo que isso já é matéria das escolhas individuais (aliás, considero que a escolha individual era especialmente valorizada por Jesus Cristo). Nesse campo, da escolha individual, estarei consigo - deveriamos partilhar ainda mais aquilo que consideramos "dons de Deus". Ainda assim, terei muito gosto em que me prove que estou errado neste ponto.

Fico à espera de resposta / comentário.

P.S. Obviamente que estava a exagerar nas questões da "clonagem" que o Timóteo, e muito bem, considerou rizíveis.

1 comentário:

timshel disse...

amigo snowball

finalmente arranjei tempo para escrevinhar qualquer coisa no âmbito deste diálogo

abraço